Tradicionalmente, a Quaresma tem sido um período de intensa
atividade em nossas igrejas. Em muitos casos, esse é o único período do ano
durante o qual cultos no meio da semana recebem um número significativo de
pessoas. Projetos de oferta especiais frequentemente fazem desse um período
crucial para o bem-estar econômico da congregação. Os cristãos o tem visto como
um período de autodisciplina e negação, de autoexame de seu coração e
arrependimento. Mas em anos recentes nós temos tido uma série de dúvidas a
respeito da tradicional observância da Quaresma.
A Quaresma tradicional era um período de solenidade e
tristeza que enfatizava um estado de espírito de pano de saco e cinza. A festa
de Carnaval realizada no dia imediatamente anterior ao que dá início a essa
época do ano é justamente porque não haveria oportunidade para alegria ou
diversão durante os dias sombrios da Quaresma. Mas em anos recentes passamos a
apreciar o lugar do júbilo e da celebração na fé cristã. E esse entendimento
vai contra aquele que faz da Quaresma um festival da melancolia.
Os auto sacrifícios com que a Quaresma já foi observada, muitas
vezes parecem hipócritas e legalistas nos dias de hoje. Os cristãos solenemente
decidiram dar-se algum prazer de viver nestas seis semanas de Quaresma. De
fato, a autonegação muitas vezes era boa para a saúde ou bem-estar geral da
pessoa e, consequentemente, em nenhum sentido um real sacrifício. Mas em nosso
mundo de fome e necessidades, é difícil achar justo que nós, por apenas algumas
poucas semanas no ano, cortemos a satisfação que provém da nossa riqueza. O problema
básico com os tradicionais “sacrifícios” da Quaresma era que demasiadas vezes
eles eram destinados a reforçar a espiritualidade da pessoa ao fazer o
sacrifício. As autonegações da Quaresma demasiadas vezes inspiravam as pessoas
a olhar mais para si mesmas do que olhar para seus vizinhos.
Nessa busca de como os cristãos poderiam observar a Quaresma
hoje, alguns apontamentos são significantes. Os nossos pensamentos não precisam
dirigir-se para a nossa vida e condição espiritual interiores, mas antes se
concentrar naquilo que Deus fez e está fazendo. De uma maneira ou de outra,
nessa época os nossos pensamentos poderiam melhor dirigir-se em direção à
aliança que Deus fez com o Seu povo. A palavra “testamento” significa aliança,
e não é por acidente que a nossa Bíblia está dividida em Antiga e Nova Alianças.
O Deus que encontramos na Bíblia não se contentou em assentar-se no céu e
esperar que os seres humanos se voltassem para ele. Pelo contrário, Deus tomou
a iniciativa de buscar todas as pessoas. Ele firmou uma aliança com Abraão e
seus descendentes a fim de que através dele fossem abençoados todos os povos da
terra (Gn 12.1-3).
Uma aliança implica num comprometimento de duas partes em
comum acordo. A aliança mais largamente observada nas relações humanas é a
aliança matrimonial e, assim, nós encontramos sempre de novo na Bíblia o
relacionamento de Deus com Seu povo comparado com o relacionamento de marido e
mulher. A história da aliança de Deus com Seu povo é a história da fidelidade
de Deus à aliança e da infidelidade do povo. Repetidamente, Deus renova Sua
aliança, perdoando Seu povo e começando de novo. Isso ocorreu da forma mais
decisiva na vinda do Filho de Deus para inaugurar a nova aliança que havia sido
prometida.
Concentrados na aliança, a nossa atenção estará direcionada
para Deus e Sua ação. Dessa forma, perceberemos que a Quaresma é corretamente
observada não através de um intenso autoexame, mas através de um levantar os
nossos olhos para Deus. Concentrados em Deus somos puxados para fora de nós
mesmos e preenchidos com o desejo de servir a Deus que fielmente guardou Sua
aliança conosco.
É a natureza humana que supõe que nós temos que nos
arrepender, reformar nossas vidas e fazer boas obras a fim de que Deus nos
perdoe, nos ame e nos aceite. O resultado final é que o que quer que nós façamos,
nós estaremos sempre de olhos nos nossos próprios interesses ao fazer isso.
Quando a Quaresma é observada nesse espírito nós realizamos vários atos de
piedade e autonegação a fim de podermos elevar o nosso status perante Deus. Mas
quando a nossa atenção é voltada para a aliança de Deus, nós descobrimos que
antes mesmo de termos nos arrependido ou realizado boas ações, Deus já tinha
nos perdoado, nos amado e nos aceitado. Como resultado, nós não nos arrependemos
e servimos a Deus a fim de ganhar o Seu favor, mas antes para expressar o nosso
amor e gratidão a Deus pelo fato de já termos recebido o Seu favor. A Quaresma
observada sob a luz da mensagem da aliança, portanto, nos puxa para fora de nós
mesmos e direciona nossa atenção para os atos de Deus e, através deles, para
nossos vizinhos, os quais Deus também ama.
Fonte: Introduction in Proclamation: Aids for Interpreting the Lessons of the Church Year - Lent, William Hordern e John Otwell. Tradução: Charles S. V. Ledebuhr
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